Sunday, November 20, 2011

Vinte anos de reportagens no JL/Nadir Afonso


Suave provocação



"O sucesso resulta de uma sucessão de desastres". O aforismo, sentencioso e catastrófico, ouviu-o Nadir Afonso, em Paris, a Jean Cocteau. Estava-se no pós IIª Guerra Mundial e o escritor e cineasta francês instruía assim o jovem sobre a necessidade de preserverar contra ventos, marés e caminhos ilusórios. Agora, prestes a completar 90 anos, o artista plástico lembra a sua vida passada como um longo tecido em que se cruzam casos e vozes há muito idos, figuras da aristocracia cultural do século XX (para além de ter privado com Cocteau ou Fernand Lèger, trabalhou com  os arquitetos Le Corbusier e Oscar Niemeyer) à mistura com companheiros de escola, em Chaves, ou o cigano que, encontrando o seu pai a caminho do registo civil, recomendou que se desse à criança o nome persa de Nadir.
A figura franzina do artista, nascido em Chaves a 4 de dezembro de 1920, reserva em si uma grande determinação física e mental ("sou um coca-bichinhos", diz com a boa disposição gentil que o caracteriza). Sempre foi assim. O filho de Palmira Rodrigues Afonso e António Maria Afonso, poeta, empregado das finanças, mestre escola e empresário, ainda menino, afrontava o fascismo quotidiano personificado no médico da escola, jogando o futebol que aquele insistia em vedar-lhe dada a sua compleição frágil. "Ainda treinei no Futebol Clube do Porto, no antigo estádio da Rua da Constituição", recorda, "mas nunca passei de ponta esquecida". As histórias da sua meninice, num país em tudo diverso do de hoje, são as que mais lhe acodem à memória, agora douradas pela saudade. Recorda a "criança mais prodigiosa" que conheceu, Valdemar Rosa de seu nome, "de uma inteligência aguçadíssima, capaz de nos sugerir, a mim e a meu irmão histórias íncriveis, em que acreditávamos piamente." Morreu tuberculoso, poucos meses depois de ter sido obrigado a deixar a escola, num tempo em que as doenças e a miséria dizimavam crianças e adolescentes. "O meu irmão e eu, como tínhamos uma roupinha decente, passávamos a vida a ser convidados para levar as borlas dos caixões que transportavam para o cemitério os nossos amigos e colegas de escola."
Mas nem tudo era luto. Nadir Afonso recorda também as grandes partidas por si feitas aos seus contemporâneos. Como aquela vez que, tendo sido surpreendido à meia-noite, parado sobre a passagem de pedras que, em Chaves, permitem a travessia do rio Tâmega, convenceu um amigo de que esperava que as águas lhe trouxessem carta vinda de Espanha. "A questão é que, minutos antes, sobre a ponte romana, eu lançara um envelope ao rio para saber quanto tempo é que este demoraria a chegar à dita passagem. Este tipo de problemas sempre me fascinou, mas ele sem nunca saber po rque estava eu ali, ficou estupefacto ao ver-me tirar a carta da água. Vinha dirigida a mim e fora remetida em Salamanca."

Arte vs arquitetura
Esta inquietação com o ritmo e a Matemática nasceu-lhe bem cedo. Aos quatro anos desenhou um círculo perfeito numa parede de casa e aos 17 ganhou um concurso nacional de pintura. Assim persuadido, quis inscrever-se na Escola de Belas-Artes do Porto, mas, uma vez que completara o ensino liceal, o  empregado da secretaria convenceu-o a matricular-se em Arquitetura. "Nessa época, os cursos de Belas-Artes eram considerados menores, destinados a alunos que, em certos casos, nem tinham a instrução primária." Isso e a eterna angústia com a estabilidade financeira levou-o para um curso (e para uma profissão) que nunca o empolgou.
Em 1946, trocou o Porto por Paris, passando a sua assinatura de Nadir Rodrigues para Nadir Afonso. Na capital francesa, foi providencial a ajuda do pintor brasileiro Cândido Portinari, que por ele intercedeu junto do Governo Francês para obtenção de uma bolsa estudo que lhe permitisse frequentar a Escola Nacional Superior de Belas-Artes ("o Portinari era membro do Partido Comunista Brasileiro e, graças a isso, tinha alguma influência junto das autoridades francesas, então de esquerda).A residir no Bairro Latino, viveu intensamente a boémia artística da cidade, contactando com Jean Cocteau, como acima se disse, e Fernand Lèger. Ao terminar a bolsa (que tinha apenas um ano de duração) valeu-lhe o arquitecto Le Corbusier, com quem trabalhou quer em arquitetura, quer em pintura: "Fui várias vezes à sua casa, no Bosque de Bolonha, para o ajudar nas suas telas. Era um homem que gostava de ensinar, mas também apreciava que o ajudassem nos seus trabalhos."
Nadir Afonso não se deslumbrou com tão brilhante convivência. Manteve (e desenvolveu) a sua concepção estética muito própria que já suscitara muitas reticências em Portugal. "Quando, em 1948, defendi uma tese intitulada A Arquitetura não é uma Arte, os meus pares zangaram-se muito comigo", recorda. "Mas basicamente eu demonstrava que a arte não é regida por qualquer obrigação de utilidade, enquanto os arquitetos trabalham todos os dias com critérios de funcionalidade." A suave, mas deteminada provocação, com que sempre abordou ambas as linguagens começava  a desenhar-se.
A Le Corbusier, seguiu-se, em 1951, o contacto com outra referência maior da Arquitetura Contemporânea: o brasileiro Oscar Niemeyer, primeiro no atelier deste no Rio de Janeiro, e, mais tarde, em São Paulo, atelier de que Nadir Afonso foi fundador e também coordenador ("embora não tivesse qualquer apetite ou vocação de comando", diz de si mesmo, nessa experiência). Ao fim de três anos de amizade e muitas divergências ("foi por causa delas que Niemeyer me mandou para São Paulo"), Nadir voltou à Europa. Zangara-se com o Brasil na sequência de uma fraude ocorrida num concurso de cartazes para comemorar os quatrocentos anos da fundação de São Paulo, em que participara.
De regresso a Paris, viveu anos que hoje lembra como de "arquitetura necessária e pintura obsessiva". Fascinado pela Arte Cinética, estabeleceu contactos com autores como Victor Vasarely, Richard Mortensesn, Auguste Herbin e André Bloc. Em 1958, a sua pintura Espacilimité (que hoje pode ser vista no Museu do Chiado) seria exposta, em Paris, no Salão das Novas Reallidades. No mesmo ano, publicava, também em França, o seu primeiro trabalho de reflexão teórica, La Sensibilité Plastique. No princípio dos anos 60, vendia a sua primeira tela, momento que não mais esqueceu: "Foi a um americano, decerto muito rico, que queria comprar aquele e mais outros quadros. Mas eu não queria separar-me deles e só lhe vendi um, o que o deixou estupefacto."

Consagração e isolamento
As décadas seguintes marcaram a consagração nacional e internacional de Nadir, que aos 50 anos de idade se ofereceu o luxo de deixar de vez a Arquitetura. À representação de Portugal na Bienal de Arte de São Paulo (em 1961 e 1969), seguiram-se dezenas de individuais em espaços como o Centro Cultural Gulbenkian, em Paris, várias galerias novaiorquinas, a Art-Service de Paris (em 1976, 1978, 1988, 1991, 1994 e 1996), a Embaixada de Portugal em Brasilia ou o Centro Cultural de Orense, para além de 54 exposições realizadas, entre 1949 e 1967, em galerias nacionais. Foram-lhe atribuídos os Prémios Nacional de Pintura (em 1967) e Amadeo de Sousa-Cardozo (em 1969), está representado em museus e colecções particulares de Lisboa, Porto, Amarante, Rio de Janeiro, São Paulo, Budapese, Paris, Wurzburg e Berlim. Já este ano, foi feita uma retrospectiva da sua obra, em simultâneo nos Museus Soares dos Reis e do Chiado. Isto sem falar nos painéis que concebeu para a estação de metropolitano dos Restauradores, em Lisboa. Nadir não é, todavia, homem de posar sob holofotes. Ao ritmo trepidante da fama prefere o recolhimento do estudo e da reflexão, de exigências bem diferentes: "Fui durante largos períodos para Chaves, onde reencontrava pedaços da cidade da minha infância, revisitava o Tâmega, brincava no jardim e reencontrava os amigos de sempre. Nessas ocasiões, não só me dedicava à Pintura como produzi muita reflexão teórica." Testemunham-no livros como O Sentido da Arte (1983); Universo e o Pensamento (2000, reeditado já este ano); Sobre a Vida e Obra de Van Gogh (2002); Da Intuição Artística ao Raciocínio Estético (2003); As Artes: Erradas Crenças e Falsas Críticas (2005); Nadir face a face com Einstein (2008) e O Tempo não Existe - Manifesto (2010). "Discordo da estética vigente, aliás, sempre discordei", explica. "Acredito que as artes plásticas não são a expressão dos mundos interiores dos artistas mas obedecem a leis matemáticas que não são perceptíveis pela razão, mas pela intuição e pelos sentidos." No seu último livro (o referido O Tempo não Existe), Nadir sintetiza assim uma demanda filosófica que o ocupa desde há 40 anos: "Devemos aceitar este princípio difícil: existe no artista uma hipersensibilidade que elabora geometrias matemáticas imponderáveis. Ele sente e não compreende. Quem procura compreender é o homem inteligente e culto, é o esteta que abraçou por missão explicar aquilo que não é explicável."
Pai de cinco filhos (nascidos entre 1948 e 1989), o artista deixará de si ainda a Fundação com o seu nome, em Chaves, e um centro de artes em Boticas, concelho onde nasceu sua mãe. Este, cuja inauguração está prevista para agosto do próximo ano, é de iniciativa municipal, terá uma exposição permanente e promoverá o debate em torno da arte contemporânea. O segundo, aguarda ainda a edificação de uma sede, mas já vai dando sinal de si, como a belíssima edição da poesia do pai do artista - Artur Maria Afonso - acompanhado por pintura de Nadir. A estas evocações, o olhar vela-se-lhe de saudades. Não podia ser de outro modo: na idade em que está, bastam-lhe os dedos de uma mão para contar quantos amigos da juventude lhe restam. Com Laura Afonso, sua mulher, enumera-os devagar, mas o sorriso com que termina não é de resignação. Mas de alegria pelo muito e bem que soube viver. 

  Lisboa, novembro de 2010

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