Saturday, November 19, 2011

A pele que eu habito, de Pedro Almodóvar

A mulher que viveu três vezes

A vingança partilha a natureza gélida das lâminas: dá-se melhor com o segredo dos blocos operatórios do que com a opulência dos teatros de ópera. Também por isso, Pedro Almodóvar, ocupado com uma história de vingança (decerto uma das mais cruéis e minuciosas da História do Cinema), abandonou a sua proverbial exuberância em favor de uma direção artística minimalista ("quase japonesa", como disse em conferência de imprensa, no Festival de Cannes, a estrela do filme, o outrora "chico Almodóvar", Antonio Banderas). Á boa maneira dos thrillers norte-americanos da década de 40, aqui apenas manda a alma negra de um homem, a quem a Medicina investiu de poder extraordinário. Não há lugar para saltos altos, bâtons escarlates e gargalhadas sonoras na noite de Madrid. Apenas um frio de sepulcro e a loucura de um Pigmaleão da Cirurgia Plástica, esquecido de que o carteiro da morte toca sempre duas vezes.
Engana-se, todavia, quem vir em tal depuração e gelo uma experiência a-típica na obra do cineasta de A Flor do Meu Segredo ou Tudo sobre a minha Mãe, o homem que tornou mundialmente famosa a movida madrilena. Em A Pele onde eu Habito, reencontramos vários dos temas caros e recorrentes na sua filmografia, nomeadamente o regresso às origens, à família e ao indispensável confronto com o passado não resolvido (presentes em filmes como Volver ou Tudo sobre a Minha Mãe), a vingança sanguinária (como esquecer Gael García Bernal, em A Má Educação?) e a questão da identidade sexual, omnipresente de forma explicíta em toda a filmografia de Almodóvar. Do mesmo modo, a aproximação ao film noir de inspiração americana, com a sua ambiência gélida, não é nova. Há muito que o realizador a "namorava", quer no conteúdo, quer na forma plástica. Em Má Educação, de 2004, essa aproximação, através da história de um rapaz abusado sexualmente num colégio religioso, que, uma vez na idade adulta, será movido pela ideia de vingança, tornava-se óbvia, desde a banda sonora à intriga. Em Abraços Desfeitos, uma mulher (Penélope Cruz) emparedada entre a vida confortável com o amante que a sustenta e o sonho de uma outra vida , com o homem que, de facto, ama, remete inevitavelmente para filmes como O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes ou Pagos a Dobrar e para as inesquecíveis personagens neles interpretadas por Lana Turner e Barbara Stanwyck respetivamente.
Antonio Banderas, que tem em A Pele em que Habito o papel da sua vida, compõe uma tão personagem tão terrífica que facilmente a imaginamos interpretada por Christopher Lee ou, numa versão mais hitchcockiana, por James Mason. Elegante, de gestos felinos e modos irrepreensíveis, o Dr. Robert é um Ivo Pitanguy que a suprema dor do abandono e da perda há-de transformar num executor implacável. No segredo paradisíaco de "El Cigarral", ele auto-confunde-se com Deus e sente-se tentado a subverter as leis da vida e morte, devolvendo o rosto das mulheres que amara e perdera (a mulher e a filha) no ser que cria em laboratório. Sonhava com uma mulher que vivesse três vezes, mas os homens não são camaleões e a pele, que se muda no bloco operatório, não é senão a morada de um ser único e irrepetível. Demasiado tarde para seu próprio bem, esta personagem compreenderá  que tal como não se devolve o sopro da vida a quem a perdeu, não basta mudar o corpo, o rosto e até o sexo de alguém para o transformar num outro. Esses são os limites da Medicina, como os da própria vida. Sobretudo se o espírito for forjado pelo aço de um grande objetivo. No caso, o de se vingar e sobreviver.

Tít. original: La Piel que Habito. Int: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Fernando Cayo. Espanha.2011. 120 minutos. Estreia 

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